Insígnias de Praxe: A Tesoura

Entre as emblemáticas Insígnias de Praxe, a Tesoura reúne tanto simbolismo como controvérsia. A sua história vai além de um simples instrumento de corte, remontando às origens da Tradição Académica e das práticas punitivas e religiosas da sociedade ocidental.

Por possuir um antigo historial ligado aos ritos com Caloiros, talvez importe entender o seu significado à luz da origem da palavra. Do Latim, tonsoria, “o que serve para cortar”, remete imediatamente para a tonsura, que se refere tanto ao ato de cortar parte do cabelo simbolicamente, como ao corte que do ato resulta.

A tonsura tem origem no Direito Canónico, como um símbolo de entrega espiritual, um sinal de desprendimento, renúncia e devoção. Com o passar do tempo, este gesto passou também para o Direito Penal, transformando-se numa punição pública e humilhante. Diversos forais municipais portugueses referem a pena de tonsura aplicada a traidores ou mulheres adúlteras, já sem valor religioso, mas como marca de desonra e escárnio.

Quando esta prática chegou a Coimbra ganhou novos significados. Durante séculos, os chamados rapanços fizeram parte dos ritos de integração e castigo estudantil. Estes poderiam constituir uma forma de Gozo ao Caloiro, de simbolizar o início de uma nova fase e de marcar a entrada na vida académica. Ao mesmo tempo, poderiam servir como uma forma de punição dentro das regras e normas da Academia. Caloiros que infringissem certas normas podiam ser rapados como castigo, muitas vezes por trupes de estudantes trajados que patrulhavam as ruas à noite para impor a disciplina, punindo, por exemplo, quem violasse o horário de recolher obrigatório.

Apesar de tudo, muitos estudantes recordavam esses momentos com carinho e humor. Era comum existirem histórias de fugas e fotografias de grupos de Caloiros rapados, acompanhadas por risos, diversão e um certo orgulho por terem feito parte desta tradição.

Contudo, esta prática não era apreciada por todos e nem sempre era inofensiva. Para além da humilhação e do desconforto de alguns em andar de cabeça rapada, poderiam existir também consequências académicas. Alguns professores viam os estudantes rapados como alunos indisciplinados, considerando que andavam fora de horas na rua em vez de estudar, chegando mesmo a anotá-los e a reprovar alguns. Embora nem todos partilhassem desta visão, esta revela como a própria Universidade via a tonsura: não apenas como uma brincadeira, mas como parte do controlo e da formação moral dos estudantes.

No entanto, as consequências poderiam ir além da reprovação académica. Existem registos de excessos e violência, em que os estudantes eram rapados à força, acabando por sofrer cortes e ferimentos. Nalguns casos, existiram mesmo episódios trágicos, em que confrontos entre trupes e Caloiros terminaram com feridos e mortes, revelando como o rapanço podia ultrapassar os limites do simples Gozo.

Até à Revolução da República, em 1910, os estudantes recorriam a tesourões de tosquia de ovelhas ou a tesouras de alfaiate, de grandes dimensões e pontas afiadas. O Código de Praxe de Coimbra de 1957 veio estabelecer regras quanto ao formato das Tesouras, que passaram a ter pontas redondas e a não ser desmontáveis. Neste código definiram-se também as modalidades de rapanço admitidas: Ad Libitum, Secundum Praxis e Simbólica. Estas normas surgiram como forma de limitar a violência associada à prática e impedir que as tesouras fossem usadas como armas, garantindo que o rapanço mantivesse o seu caráter simbólico e tradicional, afastando-se de qualquer risco físico ou excessos que marcaram tempos anteriores.

Porém, com o passar das décadas, o rapanço começou a ser visto como uma prática bárbara e ultrapassada. Assim, após a Crise Académica de 1969, a tonsura foi abolida, mas acabou por renascer no final da década de 70, mantendo-se um ritual masculino até à chegada das primeiras trupes femininas, em 1987, que adotaram a tonsura simbólica.

Hoje, olhamos para a Tesoura como um símbolo carregado de História. Mas será que, nos valores do presente, faz sentido manter este objeto como um emblema do estudante? Será que um instrumento que outrora serviu como punição deve continuar a representar a Tradição Académica? E até que ponto devemos preservar, regulamentar ou reinterpretar estas insígnias para que continuem a ter significado sem perder de vista o respeito que hoje defendemos? Talvez a verdadeira herança da Tesoura não esteja no ato de cortar, mas na capacidade de repensar o que cada gesto e símbolo representam.

Referências:

Andrade, Mário de (1957), Código da Praxe Académica de Coimbra. Coimbra: Coimbra Editora.

Notas&Melodias: Notas sobre a Origem das Insígnias de Praxe.

Notas&Melodias: Notas às Trupes Académicas - Origens e história

Penedo d@ Saudade: A VIOLÊNCIA NA PRAXE

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