Cantares de Praxe

    Fado é, segundo a definição clássica do latim, o destino. Aquilo que inevitavelmente irá acontecer. Os estudantes sempre tiveram a si associado, juntamente à boémia das suas vivências, este tom mais melancólico, o seu derradeiro destino: acabar o curso e partir. Deixar para trás “os seus melhores anos”.
    Quando falamos em Fado temos que nos lembrar que possuímos duas origens, o fado Lisboeta e o fado Coimbrão. O primeiro surgiu como proveniente dos marinheiros, algo do dia a dia, cantado por estes na proa dos navios e nos cais. Entoado para e por prostitutas, era visto e conhecido como o fado do degredo. José Régio disse uma vez: “o Fado nasceu um dia, quando o vento mal bulia e o céu o mar prolongava, na amurada dum veleiro, no peito dum marinheiro, que estando triste cantava”. Estávamos na primeira metade do século XIX quando este começou a ganhar força enquanto movimento romancista, sendo lentamente moldado pela nobreza em algo mais digno. Contudo, apenas na primeira metade do século XX é que começou a ganhar força enquanto música nobre e não da plebe. Surgem assim as tão conhecidas casas de fado em Lisboa, sendo as mais emblemáticas as de Alfama, Mouraria, Bairro Alto, Madragoa. 
    O segundo adveio da ida dos estudantes para a Universidade, que levavam as suas guitarras, e entre os seus momentos de convívio fizeram nascer esta vertente. Apenas para termos noção da época de ouro que se vivia para o fado Coimbrão, foi nesta altura que surgiram êxitos como “Do choupal até à Lapa”, “Balada de Despedida do 6º ano médico de 1958”, “O meu menino é d’oiro” e ainda “Coimbra é uma lição”. Surgiu aqui também um outro grande Homem ligado à guitarra portuguesa e não tanto ao fado cantado, cujo trabalho é excecional, Carlos Paredes. O Fado Coimbrão não terá surgido com este intuito, no entanto, a partir da década de 60, serviu de veículo de intervenção entre os estudantes e daqui sairam pelo menos dois grandes nomes a guardar na memória de qualquer estudante: Adriano Correia de Oliveira e José (Zeca) Afonso. Nesta altura, se se perguntasse se o fado era uma canção erudita, ainda ninguém o saberia, a única certeza que pairava no ar é que nascera na rua e era uma música de rua. 
    Falamos assim de duas vertentes que, apesar de aparentemente parecidas, diferem em múltiplos aspetos. Além das suas origens, apresentam outros pontos divergentes. 
    O fado Lisboeta canta os amores à sua cidade e à vida melancólica, canta as misérias da vida e critica as misérias da sociedade. Cantado nos recantos da parte mais antiga da cidade, em casas pequenas e de paredes frias, por homens de fato ou mulheres de xaile negro, sempre acompanhados de uma guitarra portuguesa.
    Passando à cidade dos amores e doutores, as vozes de Coimbra, habituadas a espaços ao ar livre, apresentam uma maior projeção. Com o hábito de realizar serenatas às suas amadas, é neste ar livre que os jovens cantam os seus amores, a sua saudade, o seu Mondego e os eternos anos de estudante. Aqui, em vez de xailes e fatos, a indumentária rege-se pela capa e batina negras e as próprias guitarras, afinadas um tom abaixo, apresentam um ritmo diferente. Tudo isto de forma a possibilitar a expressão da alma melancólica do estudante que não quer partir.
    Nas suas raízes, a serenata tem um princípio fundamental muito simples: a dedicação de uma canção ou atuação em honra de alguém, sendo este alguém geralmente uma donzela, que havia cativado a atenção do cantor e inspirado aquela demonstração de amor. Primeiro, o seu caráter era puramente espontâneo, não sendo publicitado, de forma a apanhar a rapariga “desprevenida”. Era de capa traçada, em silêncio e encobertos pela penumbra da noite, que os estudantes se aproximavam do local e, sem solilóquios, executavam as peças escolhidas. O local era abandonado imediatamente após o término da mesma,em completo silêncio.
    Foi apenas na Queima das Fitas de 1949, em Coimbra, que surgiu a primeira Monumental Serenata, em moldes mais semelhantes aos da atualidade académica. Aí, os cantores e guitarristas passaram a consagrar, não apenas versos de amor, mas também versos de saudade, dedicados aos finalistas que estavam de partida.
    Talvez pelo facto de, na altura, existirem poucos estudantes femininos ou por convenções sociais, apenas um homem poderia fazer uma serenata a uma donzela, nunca o inverso. Apesar da evolução, esta regra manteve-se: hoje em dia, a serenata académica já não tem por base ‘‘os amores’’, mas sim o amor académico, a nostalgia e a saudade dos verdes anos de estudante, mas continua a interdição às mulheres de cantar o fado académico. Muitos acreditam que, por ser tradição académica, assim se deve manter. No entanto, não deveria qualquer estudante poder demonstrar a saudade, o amor que sente, não sendo restringido pelo seu género?
    Como todas as tradições académicas, o fado e as serenatas encontram-se em constante evolução para se adaptar aos tempos que hoje vivemos, mas sem nunca esquecer o passado histórico no qual se baseiam. Para alguns, esta evolução já foi longe demais, como na opinião do Orfeão do Porto. Este prefere realizar a Monumental Serenata de uma maneira mais naturalista no seu local de origem, criando uma ruptura com o resto da Academia. 
    Mas não estamos em Coimbra nem no Porto. A nossa cidade conhece há pouco tempo esta tradição estudantil que é a Monumental Serenata. Tal como uma mãe olha para o seu filho pequeno e o protege, cabe-nos a nós, estudantes desta casa e desta cidade, olhar por esta tradição e protegê-la. Há que visar os valores do passado e acrescentar um olhar do futuro. Em Lisboa, prezamos a tradição e reconhecemos a sua evolução. Em Lisboa, as mulheres podem cantar o fado. 

Não devemos olhar para as particularidades que nos diferenciam, mas sim para o que nos une. Acaba-se a Monumental Serenata. Por todo o país, abanamos pastas com fitas, lançamos capas negras ao ar, gritamos o nosso FRA. Somos estudantes e este é um pequeno pedaço de nós.





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