Ameaças à morte da Praxe

A Praxe Académica tem atravessado diferentes períodos de crise ao longo da história, ora sendo abolida por decisões institucionais, ora enfrentando resistência de movimentos estudantis e sociais, até mesmo amolgando-se por visões sensacionalistas da comunicação social ou pela falta de envolvimento de quem, hoje, a faz acontecer. Questionamo-nos se o olhar do atual estudante trajado reflete um iminente e inevitável luto pela morte da Praxe Académica ou, quem sabe, se esta simples metáfora de um luto pela Praxe reflete a impossibilidade desta “morte anunciada”. 

A Praxe foi proibida, pela primeira vez, em 1727, pelo rei D. João V, após a morte de estudantes nas “Investidas aos Novatos”, consequência de comportamentos violentos daqueles que, ao abrigo do Foro Académico, viviam na impunidade face à justiça. Apesar da interdição, a Praxe sobreviveu na clandestinidade e voltou a ganhar força ao longo do tempo.

Com o fim do Foro Académico, em 1834, os estudantes sentiram a necessidade de uma nova estrutura de disciplina e vigilância dentro da Universidade de Coimbra. Em resposta, foi instituída, em 1839, a Polícia Académica que cedo restabeleceu os rituais de iniciação. 


Após o toque vespertino da "cabra" (um dos sinos da torre da Universidade), os estudantes, organizados em “Trupe”, procuram infratores pelas ruas da cidade. Estas práticas passam a designar-se por "Caçoada" e "Troça". A palavra “Praxe” ressurge nos textos por volta de 1860, não apenas com um novo significado, mas unificando os comportamentos característicos do meio académico, antes dispersos.


Com a proclamação da República, a Praxe quase desaparece, mas em 1916, uma representação assinada por 825 estudantes pede a restauração das praxes académicas. As práticas renascem em 1919. No Estado Novo, considerada subversiva e contrária à ordem imposta pelo Governo, deixou de ser exercida em 1969, no auge das Crises Académicas e do movimento estudantil de contestação ao regime. Curiosamente, esta interrupção teve um efeito paradoxal, pois reforçou o espírito académico e o desejo de ressurgimento da Tradição, algo que ocorreu gradualmente após a Revolução dos Cravos. É este um dos vários momentos, durante o Luto Académico de 1969, em que, talvez, muito se tenha perdido. Os estudantes que chegaram a Coimbra após 1969 já não vivenciaram a tradicional convivência estudantil e ambiente académico, e muito menos a Praxe. Com o Luto Académico, interrompeu-se a transmissão oral de conhecimentos e vivências e o que lhes era transmitido acabava por depender de relatos distantes da realidade, frequentemente distorcidos para servir determinadas narrativas como, por exemplo, a ideia de que a Praxe sustentava o regime posteriormente derrubado. Neste seguimento, surgem alguns dos famosos boatos e “mitos praxísticos” sem nenhum sentido e que passaram a ser considerados e hoje muitas vezes ensinados como verdades absolutas, nomeadamente que o Grau Hierárquico de Caloiro não pode usar Capa e Batina, que as namoradas protegem das Trupes, ou que os emblemas devem ser usados em número ímpar, entre muitos outros.  

Num contexto de crescente concorrência entre a Universidade de Coimbra e os novos estabelecimentos de ensino superior em Lisboa e no Porto, após a instauração da República, e ainda mais após o 25 de Abril de 1974, assistia-se à proliferação de Universidades Novas e Institutos Politécnicos, que buscavam legitimidade e identidade própria. Aqui, e muitos poderão discordar, poderá estar assente mais uma das ameaças, que se prende até à atualidade, a esta desvirtualização da Praxe Académica: um moldar de uma tradição que, nem de passado, nem de evolução com nexo toma forma, resultando numa tendência para práticas desprovidas de sentido ou história. Esta realidade, aliada à tendência observável de utilização da Praxe na medida em que esta favorece o próprio e recusa das obrigações inerentes a quem aceita a sua vivência, parece uma receita pouco otimista de futuro.  

Mais recentemente, novos desafios ameaçaram a continuidade da Praxe Académica. Em 2020, a pandemia da COVID-19 forçou o distanciamento social e impediu Atividades Praxísticas presenciais. Em 2021, o próprio Reitor da Universidade de Lisboa proibiu a realização de “quaisquer atividades relativas a praxes académicas”, estabelecendo sanções disciplinares a quem ousasse o seu incumprimento. Era perceptível que nem todos partilhavam o desejo do seu regresso. No entanto, estudantes de diversas faculdades da Universidade de Lisboa uniram-se para definir os próximos passos, procurando defender os seus direitos e aquilo em que acreditavam. Em pouco tempo, juntaram-se a este movimento outros grupos e associações académicas, tanto de Lisboa como de outras regiões do país, num gesto de apoio e solidariedade estudantil. Desta Frente Estudantil, resultou na recuperação do espaço da Praxe Académica na Universidade de Lisboa, fazendo parte da nossa vivência como a conhecemos hoje.  

Para muitos, a Praxe não representa Tradição, mas sim uma prática ultrapassada, que perpetua hierarquias e comportamentos abusivos. Não poderá faltar um ponto crucial numa história de tantos antagonistas: a comunicação social que se alimenta de um sensacionalismo de Capa e Batina e que tinge de mistério, crime e repulsa generalizada qualquer prática e história académica. 

É inegável que a Praxe, ao longo da sua existência, tem enfrentado momentos em que os seus alicerces parecem vacilar. No entanto, impulsionada pela vontade inabalável dos estudantes, tem provado a sua resiliência, renascendo das adversidades, reinventando-se e moldando-se aos tempos, sem jamais perder a sua essência.

Atualmente, e não de forma menos epopeica, enfrenta-se este processo de quase “seleção natural” de uma Tradição, erradamente, mal resumida, em que um futuro parece trazer novas atividades alternativas para esta “integração” de que muito se fala, deixando cair por terra tudo o que não cabe nessa amostra de definição. 


Caminhando sobre este álbum de memórias em que a Praxe esteve sob repetida ameaça de morte, levanta-se aquela que, porventura, se possa considerar a verdadeira questão: Será a morte da Praxe uma realidade dotada de possibilidade? Será que, no decorrer desta reflexão histórica, quando nos referimos a um “ressurgimento da Praxe” ou “abolição da Praxe”, caímos numa falácia pela impossibilidade deste desaparecimento? Se da nossa prática diária, no exercício de Praxe e na sua vivência aclamamos uma definição pouco específica e esclarecedora que se resume a interações entre estudantes, as suas vivências e costumes, será sequer possível, ou minimamente lógico, que questionemos a possibilidade de um fim concreto? Porque há, então, ameaça à morte da Praxe? Será a Praxe realmente o que fizermos dela? Ou será o que fazemos dela o antídoto para esta possibilidade de fim? 




Referências:

Blog “Irmandade das Sombras”: http://irmandadedassombras.blogspot.com/2008/04/breve-histria-da-praxe-de-coimbra.html

Jornal Público “A Morte natural da PRaxe”: https://www.publico.pt/2014/01/30/p3/cronica/a-morte-natural-da-praxe-1819038

Jornal Púbico, 21 setembro 2020,”Praxar ou ser praxado na Universidade de Lisboa vale processo disciplinar”: https://www.publico.pt/2020/09/21/local/noticia/praxar-praxado-universidade-lisboa-vale-processo-disciplinar-1932306?utm_source=chatgpt.com

“Praxe académica e culturas universitárias em Coimbra. Lógicas das tradições e dinâmicas identitárias;  Frias, Anibal: https://www.ces.uc.pt/rccs/includes/download.php?id=830

“Relatório_Praxes_Académicas”; Nascimento, Dulce:  OBSERVATÓRIO DOS DIREITOS HUMANOSUniversidade do Portohttps://sigarra.up.pt › noticias_geral.noticias_cont 

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Os Mitos da Praxe

Carta Apadrinhamento

Insígnias de Praxe: A Moca