Canção de Coimbra

Enquadramento geral

A canção de Coimbra, é uma designação atribuída a um conjunto muito vasto e diversificado de géneros e práticas musicais associadas sobretudo, mas não só, à tradição académica da Universidade de Coimbra. Apesar de serem utilizadas outras denominações para as tradições musicais associadas à canção de Coimbra (como fado de Coimbra, canto de Coimbra, serenata coimbrã, balada coimbrã, toada, trova…) a designação “Canção de Coimbra” permite englobar outros géneros musicais além do fado, evitando igualmente a conotação exclusiva com o fado de Lisboa. Essencialmente uma tradição masculina protagonizada por estudantes, professores e futricas, a canção de Coimbra constitui um conjunto de práticas musicais com raízes e desenvolvidas em contexto universitário. As origens e o desenvolvimento histórico do género ainda necessitam de um estudo mais aprofundado e sistemático. A sua génese está no fado de Lisboa, mas a partir da transição para o século XX e durante as duas primeiras décadas do mesmo século, a canção de Coimbra ter-se-á, gradualmente, autonomizado. As práticas musicais associadas à canção coimbrã começaram a ser documentadas em meados do século XIX, sobretudo em periódicos e edições de música (partituras). No início do século XX surgiram os primeiros registos fonográficos o que favoreceu o desenvolvimento de legados e verdadeiras árvores genealógicas de músicos que, simultaneamente, legitimam e demarcam historicamente a tradição musical coimbrã.

A ausência de estudos científicos constituiu um dos fatores que explica que a historiografia e as representações associadas a este género tenham ficado sobretudo dependentes de eruditos locais e à profusão de hipóteses que, frequentemente, mitificam as respetivas origens. Ou seja, embora a questão da performance “historicamente informada” (exatamente como se faria na altura em que foi composta) se aplique a música mais antiga, por exemplo a música renascentista (séc. XIV) e Barroco inicial (séc. XVI), como houve uma grande escassez de investigação nesta área e os músicos não estavam propriamente preocupados em escrever tratados de execução da canção coimbrã, não se sabe exatamente como é que as músicas eram tocadas na altura. Sendo que apenas temos o conhecimento, passado de boca em boca, que atravessou muitas gerações de músicos estudantes.



Percurso histórico

Algumas referências documentais dão conta da existência de práticas musicais associadas a grupos de estudantes e à boémia estudantil desde o início do século XIX. Sugerem igualmente que a penetração gradual do fado de Lisboa nesse mesmo meio terá ocorrido entre 1840 e 1860. Uma primeira figura representativa desta prática foi José Dória (1824-1869), médico e guitarrista, a quem Joaquim de Vasconcelos, na sua obra Os músicos portuguezes (1870), o refere como autor de composições em vários géneros e estilos (valsas, tangos, marchas, fantasias, variações sobre temas de óperas…). Acho importante sublinhar o impacto desta multiplicidade de referências que convivem neste conjunto de música coimbrã deste período. Na vida académica da cidade, o fado coexiste com as danças de salão, a canção sentimental cosmopolita, o repertório pianístico, a Opereta, a Ópera e com, no fundo, todas as referências musicais de uma juventude maioritariamente proveniente das elites sociais do País e desejosa de reproduzir os modelos vigentes nos salões da alta sociedade. Esta prática musical tende a apagar os contextos culturais específicos de que cada estudante é originário, uniformizando-as numa matriz coimbrã transversal. É também na obra Os músicos portuguezes (1870) de Joaquim Vasconcelos, que este refere o Fado de Coimbra, cantado por José Dória, não como um género “fadista” autónomo, como temos tendência assim para o classificar, mas sim tratando-se de uma peça específica da tradição estrófica do fado de Lisboa, com uma referência a Coimbra no título e no conteúdo da letra. É muito provável que o fado praticado em Coimbra, nesta altura, ainda não se tinha autonomizado do fado de Lisboa, a não ser no texto cantado e nas temáticas abordadas, que em Coimbra estão naturalmente associadas ao quotidiano e ao imaginário estudantil. Como por exemplo, a vida académica, a capa, a batina, o Mondego, a boémia, os amores, as saudades do tempo de estudante, espaços como o Penedo da Saudade ou o Choupal… 

No entanto, sem sombra de dúvidas, deve-se a Augusto Hilário o mérito de ter sido o primeiro grande defensor e divulgador da canção de Coimbra. Hilário deixou algumas canções, entre elas o Fado serenata e Último fado, que correspondem, respetivamente à primeira e segundas partes do conhecido Fado Hilário, canção de homenagem a este cantor e guitarrista, com um poema de Gabriel de Oliveira. Estes dois fados, apesar de apresentarem ainda alguma semelhança estrutural com os fados de Lisboa, revelam já uma maior autonomia do fado praticado em Coimbra, nomeadamente no que diz respeito à estrutura harmónica. 

Considera-se A. Hilário, cantor e guitarrista, o ponto de referência e de partida de toda a história da canção de Coimbra como género autónomo. Ele terá sido também fundamental na consolidação de um estilo vocal característico da canção de Coimbra e distinto da técnica vocal popular do fado de Lisboa, em que há uma colocação de voz semi-operática e de linguagem expressiva ultra-romântica, especificamente no que toca à liberdade rítmica do enunciar da frase musical e às suspensões das notas agudas. Tal como no fado de Lisboa e na tradição da própria modinha sentimental, o contorno melódico da canção de Coimbra assenta nos três pilares harmónicos fundamentais (tónica, dominante e subdominante). A forma da canção era geralmente estrófica com uma estrutura interna binária. A uma introdução instrumental, que podia ou não antecipar a linha melódica cantada, sucedia uma primeira quadra seguida da repetição da introdução, ou de um excerto desta, cantando-se posteriormente uma segunda quadra com a mesma melodia da primeira.

Grande parte do repertório inicialmente gravado tem acompanhamento de piano, era o instrumento protagonista dos salões da época, e só progressivamente se juntou a guitarra ao ensemble. A coexistência dos dois foi facilitada pela afinação da guitarra de Coimbra, um tom abaixo da guitarra de Lisboa. Só posteriormente, ao sair dos salões, é que os músicos abandonam o piano e associam à guitarra, a viola, para fornecer suporte harmónico. 

Após A. Hilário, destacaram-se Ricardo Borges de Sousa (1860-1930), Manuel Mansilha (1885-1956), Manassés de Lacerda (1885-1962), Alexandre de Resende (1886-1953), Francisco Menano (1888-1970), Paulo de Sá (1891-1952) entre outros… A produção destes músicos, a par do estilo individual, acentuou as características interpretativas e composicionais disseminadas sobretudo a partir de A. Hilário e constituiu uma ponte importante para a geração seguinte, que veio definitivamente consolidar a canção de Coimbra como género autónomo do fado de Lisboa. Por esta razão, os cantores António Menano (1895-1969), Edmundo de Bettencourt (1899-1972), Lucas Junot (1902-1968) e Paradela de Oliveira (1904-1970), juntamente com o guitarrista Artur Paredes (1899-1980), são as principais figuras do que se viria a designar por “geração de oiro” da canção de Coimbra. Ativos sobretudo nas décadas de 20 e 30, integraram na canção de Coimbra tradições regionais trazidas pela população estudantil da época. Artur Paredes destacou-se pelas inovações nas técnicas de execução instrumental. Deixou muitas composições para guitarra solo, permanecendo como referência da composição e interpretação da guitarra de Coimbra. Também se devem a ele as últimas modificações na morfologia da guitarra, tendo em vista uma sonoridade mais ampla e possante. 

Foi na década de 40 que as transmissões das “serenatas radiofónicas”, iniciadas em 1946 no Emissor Regional de Coimbra, contribuíram para a divulgação de música e de repertório a camadas mais alargadas da população. Esta divulgação terá contribuído para uma maior popularização das tradições académicas, acentuando a sua prática em contextos mais formais, como a institucionalização das Serenatas Monumentais da Queima das Fitas (em 1948 no Penedo da Saudade e, desde 1949, na Sé Velha). 

Na década de 50 a produção musical era tão diversificada que era possível identificar diferentes posicionamentos estético-musicais. Este período ficou marcado pela atividade de dois agrupamentos; o Grupo de António Brojo e o Coimbra Quintet. O Coimbra Quintet foi formado como resposta à partida de A. Brojo para o estrangeiro (para preparar o doutoramento). Tinha como integrantes António Portugal e Jorge Godinho nas violas e Fernando Machado Soares, Luiz Goes e José Afonso como cantores. Foi com este grupo que A. Portugal compôs Variações em lá menor, obra que considero como sendo pioneira no uso de dissonâncias na canção Coimbra, dado a ter em conta, visto que este guitarrista foi importante na renovação da canção de Coimbra e no desenvolvimento do movimento da trova no início dos anos 60. A intensa atividade desenvolvida por ambos os grupos contribuiu para a disseminação do mito de uma “segunda idade de oiro”, a par do reconhecimento individual de cantores e instrumentistas fora do meio universitário.

Ao longo da década de 50, a perspetiva otimista sobre a canção de Coimbra adveio igualmente da atividade de outros agrupamentos que romperam com as tendências das décadas imediatamente anteriores, adotando um estilo mais contemporâneo. Esta característica estava presente, por vezes, até nos trabalhos de cantores menos associados a uma estética de renovação, mais conservadores, como os acompanhamentos de C. Paredes e de J. Bagão nos fonogramas de A. Camacho nas obras Fado de Coimbra (1958) e Fado do Mondego (1960).

A década de 60 inicia-se com a publicação de Balada de Outono (1960), de J. Afonso, tida como grande rutura no âmbito da canção de Coimbra. Apesar da atividade musical inicial do cantor se enquadrar com a tradição da canção de Coimbra, o EP Baladas de Coimbra (1962) anuncia já uma procura de novos rumos. O uso do termo “balada” foi proposto por F. Menano na ausência de uma designação mais apropriada e, inicialmente, não exprimia qualquer programa estético. Por outro lado, a vontade de inovação estava já expressa ao nível do conteúdo dos textos mais próximos de um intervencionismo social e político. Esta tendência vinha-se já a sentir nas canções Minha mãe e Balada de Aleixo do fonograma do Orfeão Académico de Coimbra (OAC) publicado nos Estados Unidos da América sob o título Coimbra Orfeon of Portugal (1962), e nas canções Baladas de Coimbra e Menino d'Oiro (1958). Mas no mesmo ano em que seria editado o fonograma do OAC com as canções de J. Afonso, o ambiente de contestação que se vivia em Coimbra no rescaldo da crise académica de 1962 propiciou também o sucesso desta tendência no meio estudantil académico e a consequente disseminação por todo o país de um conjunto de canções produzidas no âmbito do núcleo de amigos e colegas que se reuniam na casa de Manuel Alegre, entre os quais A. Portugal, A. Brojo, Rui Pato, J. Godinho, L. Baptista, Adriano Correia de Oliveira, F. M. Soares, Fernando Rolim, J. Afonso e Sutil Roque. A produção musical desenvolvida a partir deste grupo viria mais tarde a ser identificada como “movimento da trova”, em parte devido à influência da poesia trovadoresca na produção poética de M. Alegre que, influenciado pelo clima de renovação que partia deste grupo e seguindo uma linha de ação comum a vários poetas modernistas, encetou uma renovação da poesia a partir da própria tradição. Sobretudo através da utilização de formas poéticas tradicionais, como as estruturas dos cantares de amigo, das trovas e da rítmica e prosódia camonianas, conferindo-lhes um conteúdo temático relacionado com as preocupações da geração da sua época (a Guerra Colonial, a emigração, a identidade portuguesa, a resistência antifascista…). O poema Trova do vento que passa (1963), com música de A. Portugal e voz de A. C. de Oliveira, viria a tornar-se uma das canções paradigmáticas deste período. Aproveitada pelos meios estudantis contestatários (através dos fonogramas de A. C. de Oliveira e das gravações de poesia recitada que eram divulgadas em associações e encontros académicos), transformou-se num símbolo de resistência à ditadura do Estado Novo. Tanto a balada como a trova foram utilizadas como meio de expressão do descontentamento estudantil com o regime político da época e estiveram na origem de um movimento musical caracterizado pela atividade de cantores que se acompanhavam à viola, interpretando canções de acentuado teor político e social. Assim, estas constituíram a transição da canção de Coimbra para a canção de protesto e para a canção de intervenção.

A partir de 1974, na sequência imediata da revolução de 25 de Abril, a prática da canção de Coimbra, que se filiava ainda na tradição anterior à trova dos anos 60, tal como as tradições académicas, foi rejeitada pelos próprios organismos da Academia e conotada com uma postura política conservadora de solidariedade para com o regime deposto. Apenas em 1978, após a realização do 1º Seminário sobre o Fado de Coimbra, a canção coimbrã começou a ser revitalizada. 

A partir dos anos 80 começaram a ser formados cantores e instrumentistas no âmbito da escola de fado sediada no edifício Chiado (1978-1985), tendo como monitores Jorge Gomes e Fernando Monteiro, da Escola e Grupo de Fados do OAC e da escola da Secção de Fado da Associação Académica de Coimbra. 



Entre Capas Negras e Silêncio – A evolução das Serenatas “de Espetáculo”


Atualmente, associadas às Serenatas ditas “Monumentais” estão o silêncio e a ausência de palmas, complementadas por uma sobriedade e rigor característicos.

Porém, nem sempre o silêncio prevaleceu, pelo menos nas Serenatas “de Espetáculo”, onde se enquadram “as Monumentais”. Nas antigas serenatas, do século XIX, estudantes juntamente com os restantes ouvintes batiam vibrosas e alegres palmas. Também em Lisboa, após uma atuação brilhante de Augusto Hilário, em pleno Teatro D. Maria I, no ano de 1895, o “patriarca” da Canção de Coimbra foi aplaudido, o que permite concluir que as palmas estiveram claramente presentes, como um sinal de apreço a este género musical e assim prevaleceram, pelo menos, até dezembro de 1946.

Como já mencionado na secção anterior deste documento, quando foi transmitida pela primeira vez uma Serenata na Sé Velha, o silêncio reinou. Calcula-se que no momento da gravação, a ausência de qualquer barulho remeta para uma tentativa de, não só simular uma Serenata tipicamente Coimbrã para o restante país, como também idealizar um outro tipo de Serenata praticado na Lusa Atenas, as serenatas “de Rua”. Estas, também designadas “de Cortejamento”, destinavam-se às colegas e amores, quer dos cantores ou guitarristas, quer de outros estudantes que procuravam artistas para, através do Fado, verem expresso o seu amor. As moças e donzelas, sem autorização para agradecerem, assistiam sossegadamente e entre cortinas a tais serenatas. Talvez o exemplo mais romantizado e conhecido será o tema “Coimbra”, cantado por José Duarte (Alberto Ribeiro) à Maria de Lisboa (Amália Rodrigues), eternizado no filme “Capas Negras” (1947).

Assim, é no ano de 1946 que se marca um ponto de viragem e se associa uma nova tradição às Serenatas – o silêncio e a ausência de palmas, de tal forma que nas décadas de 50 e 60 este costume já se encontrava completamente enraizado.



A importância do Fado para o Estudante e o restabelecimento das Serenatas Monumentais pós-25 de Abril

Na secção “Percurso Histórico” deste documento foi possível denotar-se uma pausa na realização das Serenatas Monumentais, na década que sucedeu a Crise Académica de 1969. Como mencionado, após a Revolução dos Cravos, o Fado e a Canção de Coimbra foram percecionados como símbolos retrógrados, associados a um regime que tão arduamente os Estudantes tentaram combater.

Jorge Gomes foi um dos “pioneiros” a restabelecer o ensino e aprendizagem da Guitarra e a tirar a Capa e Batina do baú, sendo altamente criticado e, até, perseguido.

É no ano de 1977, que surge uma luz ao fundo do túnel, pela atuação de um Grupo de Fados, não em Coimbra, mas sim em terras Algarvias, o que chamou à atenção do Presidente da República Portuguesa, General Ramalho Eanes. Este expressou a sua vontade, aquando da visita à cidade de Coimbra, de assistir a uma tradicional Serenata na Sé Velha.

Assim, um ano mais tarde, entre 20 e 21 de Maio, dá-se o I Seminário do Fado de Coimbra, organizado pela Câmara Municipal e com o apoio da recém-eleita Direção-Geral da Associação Académica de Coimbra. Deste Seminário, surgiu, como já explicitado, a célebre Escola de Fado do Chiado, responsável pela génese de novos grupos de Fados constituídos por estudantes. Maior fruto ainda foi a Serenata Monumental que se seguiu, na Sé Velha, a 22 de Maio, com mais de duas horas de duração. Temas como a Balada do Sexto Ano Médico e Coimbra tem mais encanto na hora da Despedida foram várias vezes repetidas e cantadas em coro com a multidão, que se juntou após dez anos de silêncio, relembrando a Saudade de tamanho evento.

Um ano antes, ter-se-ia divulgado a iniciativa de um conjunto de estudantes com intenções de restabelecer a Praxe Académica na Universidade de Coimbra, formando-se o Movimento Pró-Reorganização e Restauração da Praxe Académica de Coimbra, com o principal objetivo de reconstruir um dos órgãos Praxísticos mais importantes, o Magnum Consilium Veteranorum. O processo foi difícil e contestado, pois, tal como o Fado, a Praxe Académica foi associada a ideais fascistas, cujos motes e escritos pertenciam ao passado.

No entanto, o sucesso desta Serenata juntamente com a realização do II Seminário do Fado de Coimbra, faz com que em 1979, naquela que terá sido um teste final para o novo arranque da Queima das Fitas, se realize uma Semana Académica, iniciada por uma Serenata Monumental, que marcou o renascer de uma tradição secular.

Na mesma noite e tentando demonstrar o antagonismo da Academia decorreu o “Dia da Flor”, para comemorar e relembrar uma década da Crise de 69 e que contou com protagonistas como Sérgio Godinho e Adriano Correia de Oliveira, este último, curiosamente, também conhecido intérprete da Canção de Coimbra.


Dr Afonso "House of Extravaganza"



Referências Bibliográficas:

https://acercadecoimbra.blogs.sapo.pt/coimbra-personalidades-jorge-gomes-3-35635 

https://www.cd25a.uc.pt/storage/media/pdf/Biblioteca%20digital/COIMBRA%201969_% 20tese%20mestrado%20CarlosMJMartins.pdf

https://penedosaudade.blogspot.com/2021/11/palmas-nas-serenatas-o-curiosoevoluir.html

http://guitarradecoimbra4.blogspot.com/search?q=palmas+nas+serenatas


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